domingo, 15 de fevereiro de 2009

O objeto da Criminologia

É o crime o objeto de estudo da Criminologia?

Professor Sandro Sell



Um campo de saber precisa ter um objeto preciso de investigação. Por óbvio, o da Criminologia haveria de ser o crime. Mas neste caso o óbvio esbarra na dispersão semântica do conceito apontado. O que é crime para o Direito penal nem sempre é considerado crime pela sociedade e vice-versa. Caso a Criminologia adotasse, sem mais, o conceito criminal do Direito, a sociedade poderia acusá-la de não se importar com suas demandas, apegando-se ao formalismo jurídico e, com isso, deixando escapar a realidade. Ao revés, caso resolvesse tomar como objeto de investigação aquilo que a sociedade toma como sendo crime, o Direito poderia considerar a Criminologia inútil por não respeitar os limites legais das definições de condutas enquanto criminosas. Inútil esticar. O cobertor que representa o conceito de crime parece curto demais para dois repousantes tão espaçosos quanto o Direito e a sociedade.


Para os que defendem que a Criminologia é um saber auxiliar do Direito, seria razoável tomar o conceito jurídico de crime como objeto comum de estudo para as duas disciplinas. Assim como, no Direito civil, o acessório segue o principal, a definição criminológica de crime deveria se conformar em espelhar definição penal. E as pessoas comuns, antes de dizerem de uma conduta “Isto é um crime”, deveriam consultar o Código Penal, a fim de evitar impropriedades.


No entanto, para a decepção do ímpeto imperialista dos juristas, os demais saberes, via de regra, não se constituem para servir ao Direito; ao contrário, com muito mais freqüência é o Direito que exerce essa função de auxiliar. Afinal, o Direito regulamenta o jogo social, mas não é o próprio jogo. Pensar nas demais ciências enquanto meras auxiliares do Direito é tão esdrúxulo quanto pensar que os atletas de futebol treinam e jogam para auxiliar o juiz da partida. Portanto, a Criminologia não precisa submeter-se, tout court, ao Direito; devendo levar as questões jurídicas em consideração apenas à medida que essas sejam de interesse criminológico e não o inverso. No Direito penal, o crime é definido, geralmente, como uma conduta típica (ou seja, descrita em lei como passível de pena), antijurídica (isto é, não justificável pelas circunstâncias) e culpável (quando a pessoa que desrespeita a lei penal é imputável e tinha a possibilidade de agir de modo conforme a norma). Assim a conduta de matar alguém só é crime porque está prevista em lei como proibida (art. 121 do CP). Mas essa simples previsão não basta para afirmarmos, com certeza, que dada a situação em que A matou B essa morte foi criminosa. Ela pode ter sido plenamente justificada pelas circunstâncias, se constituindo em legítima defesa, por exemplo.


Além disso, para completarmos a investigação sobre a possível ocorrência de um crime, haveríamos de saber se aquele que matou era imputável (maior de 18 anos e com capacidade normal de discernimento e coisas do gênero). Só após tais análises, o operador jurídico poderá afirmar: “Sim, essa morte foi um crime”; antes, não. O crime em Direito não é, pois, um fato natural, algo que ocorre e pronto, saltando aos olhos do investigador. Não, em Direito o crime é o resultado de uma construção normativa: é crime o que o Direito diz que é crime e, apenas, na medida em que não crie exceções desclassificadoras de delito. O criterioso conceito jurídico de crime pode parecer decepcionante aos acusadores de plantão, mas constitui uma inafastável garantia aos cidadãos. Ele surgiu como um freio a uma eventual sanha persecutória do Estado que, na atualidade, monopoliza o direito social de punir violações legais. Com efeito, a partir da modernidade, sobretudo, dos indivíduos foi confiscada a possibilidade de se vingarem daqueles que os ofendem. Fazer justiça com as próprias mãos tornou-se crime. O Estado assumiu o que Max Weber chamou de monopólio da violência legítima: só ele pode aplicar penalidades aos criminosos. No entanto, para a tranqüilidade dos cidadãos, o Estado não é livre para aplicá-las como e quando quiser. Ao contrário, só poderá fazê-lo dentro de estritas regras de direito, cujo objetivo primeiro é evitar abusos e arbitrariedades. É por tal razão que a definição de alguém enquanto criminoso é precedida de tantas cautelas. Pela mesma razão, os Estados de direito repudiam a chamada analogia in malam partem, aquela em que se pune uma conduta não prevista em lei como crime por se assemelhar a uma outra efetivamente prevista. Como dizem os penalistas: nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.
O fato de o conceito jurídico de crime procurar corresponder a necessidades tanto da técnica jurídica quanto do Estado de direito, não significa que sua aplicação será técnica e precisa. Na prática há mais condutas criminosas do que o sistema penal possui possibilidade de combater. Assim, haverá uma seleção político-ideológica de certos crimes que a sociedade elege como merecedores de combate em detrimento de outros que parecem merecer tolerância. Como em geral os crimes tolerados são aqueles realizados por pessoas com mais recursos (crimes de sonegação fiscal, corrupção, peculato, banqueiros do jogo de bicho, agiotas) e os mais enfaticamente perseguidos são os realizados habitualmente por pessoas mais pobres (furtos, roubos, porte ilegal de armas), a impressão que dá é que os pobres delinqüem mais do que os não pobres. Mas isso resulta do fato de o sistema de persecução penal ser arbitrariamente seletivo: seu dever era perseguir tudo o que está definido como crime, mas como isso paralisaria a sociedade (com suas múltiplas criminalidades), escolhem-se os mais pobres para satisfazer o apetite do aparato de repressão penal. É por isso que os críticos do modelo vigente ironizam dizendo que para que uma conduta seja crime em Direito, ela há de ser não apenas típica, antijurídica e culpável, mas, sobretudo, cometida por uma pessoa de baixa renda. As estatísticas sobre a pobreza dos encarcerados, lamentavelmente, reforçam a visão desses críticos.


Pensemos num indivíduo jovem, pobre e negro – o estereótipo social do criminoso – que entra numa loja de um shopping e furta um chocolate, cujo valor é de um real. Com a ajuda da zelosa sociedade de bem, ele será detido, mostrado à imprensa e entregue ao sistema penal, no qual será tratado com desprezo e arrogância. Quem manda ser bandido! Mas naquele mesmo dia, como em muitos e muitos outros, o bom pai de família, proprietário da loja furtada, deixou de recolher o imposto devido, por achar que já pagava demais. A cada 100 reais de venda não declarada, ele embolsava em torno de 20 reais de dinheiro público. No dia que o bandido lhe furtou o chocolate, ele havia deixado de declarar a venda de pelo menos dois mil reais. Com isso ele se apropriou, criminosamente, de 400 reais de dinheiro público. Haverá imprensa a mostrar-lhe a cara envergonhada? Haverá policiais e algemas em seu estabelecimento? Haverá promotor a discursar ferozmente contra ele? Provavelmente estarão muito ocupados com o garoto do chocolate para darem atenção a esses crimes irrisórios.Suponhamos mais. Um aluno de Direito que surpreende um pivete tentando furtar o CD player de seu automóvel. A polícia chega e apreende o garoto. No carro do estudante, dezenas de CDs pirateados – ou seja, uma série de crimes! - que, somado o que deixou de pagar de direitos autorais, superariam o próprio valor do aparelho cujo furto foi tentado. Por que esse estudante não teme que o policial queira lhe incriminar por estar negociando mercadoria ilícita? Porque ele sabe que o sistema, não podendo perseguir todos os crimes, perseguirá preferencialmente o crime que é cometido pelos mais pobres. Por que tal preferência? Porque os mais pobres não reclamam de abuso de autoridade, não são acompanhados de advogados e seus estratagemas emperrantes da investigação policial. E porque prender os mais pobres dá a impressão de “missão cumprida”, enquanto que prender os mais ricos, além de ser um risco à carreira, pode parecer um sintoma de inveja. In dúbio contra mísero. Mas há mais. Dirão alguns que piratear CDs é muito diferente de furtar chocolates. Nem tudo que é crime para a lei é crime para a sociedade. Não fornecer a nota fiscal devida, fotocopiar grande parte das obras de autores em “xerox” de universidades, baixar clandestinamente músicas da internet, apostar no “jogo do bicho”, entre outras condutas, são criminosas para o Estado, mas, em geral, bem aceitas pela sociedade. Ao revés, a prostituição e o incesto são condutas freqüentemente repudiadas pela sociedade, sem que sejam crimes em sentido jurídico.


Essa dissonância entre o que a sociedade considera crime e o que o Direito assim classifica ajuda a explicar o caráter seletivo da persecução penal. O agente da lei quer ter seu trabalho reconhecido pela comunidade que o sustenta, então acaba por dar preferência persecutória, dentre os crimes em sentido jurídico, àqueles que são também crimes em sentido social. Em outras palavras, para ser combatida não basta que uma conduta seja criminosa, necessário que seja também uma transgressão aos valores sensíveis da sociedade.Talvez pudéssemos, então, trocar o conceito jurídico de crime pelo conceito sociológico de transgressão, enquanto objeto de estudo da Criminologia. Destarte, transgressões são as condutas cuja realização perturbam a consciência do homem médio, não diretamente envolvido com a questão, a ponto de este se sentir no direito de nelas intervir, aceitar ou mesmo reivindicar que intervenções punitivas sejam feitas. Assim, mesmo que o adultério no Brasil tenha perdido a sua classificação de conduta criminosa para o Direito, ele continua sendo dito como transgressivo em determinadas localidades do Brasil, a ponto, inclusive, de se constituir em motivo absolutório de certos assassinos de esposas adúlteras. Ao contrário, a prática do jogo do bicho, embora ato contravencional para o Direito, é tida como não transgressiva. Isso significa que as pessoas típicas de nossa sociedade não se sentem autorizadas a agredirem aqueles que jogam no bicho. Crime ou transgressão, qual o objeto da Criminologia? Pelos exemplos acima, já deve ter ficado claro que qualquer um deles, isoladamente, não permite o estudo da totalidade das condutas que se poderia esperar de uma ciência como a Criminologia. Deixar de estudar certos crimes juridicamente definidos pela razão de não possuírem importância social seria um atentado ao próprio nome deste campo de saber. Mas deixar de estudar determinadas práticas repudiadas pela sociedade, enquanto transgressivas, porque o Direito lhes nega a condição de criminosas, é igualmente deixar de se ocupar com fatos que parecem intimamente de sua competência. A solução seria ter como objeto da Criminologia tanto um como o outro. Assim, definiremos o seu objeto estudo da seguinte forma:


A Criminologia estuda os crimes e as transgressões, na forma como são definidos e utilizados pela sociedade, seus fatores de geração e controle, bem como seu potencial de interferir no destino de seus praticantes (criminosos, transgressores), de seus controladores (agências de controle policial-penal e agências morais) e a vinculação de tais fenômenos com o modelo de sociedade.


Quanto mais houver congruência entre o conceito de crime e o conceito de transgressão em uma dada sociedade, mas legítimo será seu sistema de punição criminal, assim como haverá alta taxa de legalidade em sua aplicação. Legalidade diz respeito à compatibilidade entre a lei e a punição; enquanto legitimidade associa-se à aceitação popular da punição empregada. Quando o Estado pune banqueiros do jogo do bicho, por exemplo, muitas pessoas alegam que isso é bobagem, que tal ação em nada melhorará a sociedade. Já quando o Estado pune um estupro contra criança, haverá uma sensação coletiva de que justiça foi feita. Embora as duas punições tenham sido legais, só a segunda foi legítima.


Para melhor visualizar:


Se uma conduta é definida como criminosa e transgressiva, a punição criminal a ela será tida como legal e legítima. Exemplo: punir assaltantes violentos.


Se uma conduta é definida como criminosa, mas não transgressiva, a punição penal a ela será tida como legal, mas não legítima. Exemplo: punir jovens por copiarem ilegalmente filmes na internet.


Se uma conduta é definida como transgressiva, mas não criminosa, a punição penal a ela será ilegal, mas não ilegítima. Exemplo: punir a prostituição.


Se uma conduta não é definida nem como criminosa, nem como transgressiva, a punição penal a ela será ilegal e ilegítima. Ex. punir uma mulher por estar na praia de biquíne


Um fato comum entre o crime e a transgressão, como objeto da Criminologia, é que ambos não existem enquanto realidades independentes. Para ser crime, algo há de contrariar a lei; para ser transgressão, há de contrariar a sociedade. São, então, o Direito e a sociedade que definem as condutas que são objeto da Criminologia. Não existem condutas criminosas ou transgressivas naturais.

Poderíamos parafrasear o brocardo latino dizendo: não há crime sem lei anterior que o defina, nem transgressão sem prévia definição social. Portanto, o objeto de estudo da Criminologia variará não apenas com a mudança nas leis, como com a mudança nos costumes sociais.


Exercícios:

1. Por que o conceito de crime não consegue abarcar a totalidade do objeto de estudo da Criminologia?

2. O conceito jurídico de crime é bastante complexo. A que funções poderiam corresponder tal complexidade?

3. O que significa dizer que o Estado detém o monopólio da violência legítima?

4. Por que se diz que o sistema penal é bastante seletivo? Como diante dessa seletividade explicar o brocardo dura lex sed lex?

5. Quais as diferenças entre crime e transgressão?

6. Toda punição estatal de um crime efetivamente verificado é legítima? Explique.

7. Leia o artigo 229 do Código Penal Brasileiro: “Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.” O trecho "destinado a encontros para fins libidinosos" parece adequar-se perfeitamente a definição de motel. Por que, então, motéis, nesta acepção são tolerados?

8. Por que não existe crime natural?