sábado, 9 de maio de 2009

Mulheres free! (Atividade Sociologia Jurídica)

Alunos de Sociologia Jurídica da UNIVALI, leiam o texto que segue e respondam:
1) Qual é a tese defendida pelo autor?
2) Que argumentos ele utiliza para defender essa tese?
3) Você discorda dessa tese, sim não, fundamente (é preciso ser explícito e convincente!).
Entrega: dia 23 de junho em sala.

Jus Navigandi

Descontos sexuais:
o lado não polêmico da inconstitucionalidade cotidiana
Em 1997, o Grupo de Teatro Olodum, movido pela idéia de que os negros têm menos acesso à cultura, resolveu dar um desconto inusual: eles pagariam apenas 50% do valor do ingresso na peça Cabaré da raça. Um preço para brancos, outro, menor, para negros. Sob a acusação de atentar contra o Princípio da Igualdade (art. 5o. caput da CF), o Olodum cedeu, estendendo o desconto a todos os freqüentadores. Devido a essa atitude preventiva dos produtores do espetáculo, o Judiciário não chegou a se posicionar sobre o caso. Seria ilustrativo vê-lo fazendo, pois o princípio isonômico não é apenas um dos nossos fundamentos constitucionais: ele é a base do nosso sistema de direitos. Tal é o que entende, por exemplo, Celso Ribeiro Bastos [01] quando salienta que o fato de o citado princípio estar localizado não num dos incisos, mas no próprio caput do artigo 5o da Constituição, o centro nevrálgico de nossas garantias e direitos, indica sua precedência axiológica em face dos demais princípios. A igualdade deveria ser, então, o fundamento de nossa ordem jurídico-social.
Não obstante, muitos fatos nos levam a crer que o princípio isonômico é sub-aproveitado enquanto corretivo de desigualdades que, por sua cotidianidade e aparência simpática, proliferam-se incólumes a questionamentos judiciais. Dar descontos e entradas livres a mulheres em bares e boates, presumir-lhes uma consumação mais baixa do que a masculina, utilizar a estratégia do "mulheres free"para atrair homens para casas noturnas, ofende o princípio isonômico? Qual a diferença em dar desconto por critérios raciais e dar descontos por critérios de sexo ou gênero? Talvez a diferença não seja de essência, mas de costume. Com efeito, o critério racial se nos apresenta como exótico, importado de países como os EUA e suas políticas de cotas, enquanto as nuances questionáveis das desigualações por gênero mostram-se corriqueiras e simpáticas demais – de inspiração cavalheirística – para ousarmos questionar seus eventuais problemas. Resistiria esse pretenso cavalheirismo a uma análise constitucional das desigualdades aceitáveis? Analisemos.
Dar descontos a negros, mas não a brancos, em espetáculos parece clara e consensualmente afrontar a ordem das desigualdades aceitáveis num Estado de direito. Basta lembrar que fazer o inverso, cobrar mais caro dos negros, seria uma atitude certamente tida como criminosamente racista. Mas as coisas não são tão simples quanto aparentam. Uma medida desigualitária será classificada como atentatória à isonomia mais pela motivação que a inspira do que pela diferenciação que efetivamente opera. Não são, certamente, motivações reprováveis que alimentam a criação de regimes diferenciados – cotas, descontos, vagas preferenciais - quando o objetivo de tais diferenciações é que, por meio delas, aqueles que são costumeiramente discriminados aproximem-se em possibilidades dos socialmente privilegiados. Cobrar menos impostos dos pobres, dar vagas preferenciais a idosos e a deficientes em estacionamentos, subsidiar a habitação e a alimentação dos miseráveis são exemplos de regimes desigualitários, mas não contrários à isonomia, já que seu objetivo final é, justamente, corrigir desigualdades factuais, distribuindo os bônus públicos de forma preferencial aos mais necessitados. A equação das diferenciações aceitáveis por nossa Constituição passa pela lógica de que a desigualação no antecedente (no regime diferenciador) deve provocar maior igualdade no conseqüente (no objetivo da diferenciação). Portanto, tratamentos desiguais só serão tolerados se tiverem por objetivo e conseqüência diminuir a distância inicialmente verificada entre as pessoas na sociedade. Esse é o motivo porque deficientes físicos podem ser contratados a partir de regimes especiais pela Administração Pública (art. 37, VIII, da CF). Toda diferença de tratamento deve servir para diminuir as diferenças sociais e jamais para perpetuá-las.
As polêmicas medidas de ação afirmativa, como as cotas para negros em universidades, seguem a mesma idéia de realização não ortodoxa do princípio da igualdade: desiguala-se brancos e negros no ingresso à universidade para que brancos e negros igualem-se mais facilmente em termos do número de egressos do nível superior. Se as cotas realmente funcionarão para corrigir as desigualdades raciais brasileiras, é questão polêmica e por nós já debatida exaustivamente em outro lugar [02], aqui o que interessa é salientar que a motivação igualitária das cotas as isentam de se constituírem em afronta ao princípio isonômico. Em sua intenção, as cotas pretendem materializar o objetivo constitucional da igualdade sonhada, mas ainda inexistente, entre negros e brancos. Na prática, as cotas, talvez, só sirvam para acirrar preconceitos raciais, mas, em tese, a desigualação que promovem é teleologicamente compatível com nossa ordem constitucional [03].
Entendido o norte interpretativo das desigualações possíveis, voltemos a polêmica de se fere ou não nosso ordenamento jurídico diferenciar positivamente as mulheres no ingresso a casas noturnas.
A igualdade entre homens e mulheres em nossa ordem constitucional poderia perfeitamente derivar do caput do artigo 5o: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...", mas o legislador quis ser enfático e, já no primeiro inciso do citado artigo, complementou: "Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos dessa Constituição." A expressão "nos termos dessa Constituição" tem sido entendida como significando que a desigualação entre homens e mulheres só poderia ser feita pela própria Carta Magna, que de fato o faz. A Constituição promove discriminações em favor das mulheres em três casos: licença-gestação superior à licença-paternidade (art. 7o, incisos XVIII e XIX); proteção específica ao trabalho da mulher (art. 7o, XX) e prazo mais curto para aposentadoria por tempo de serviço feminino (arts. 40 e 202, e suas especificações). Autores como Eliane Maciel [04] salientam que tais casos são excepcionais, com fundamentação própria, e não podem servir como motivos de criação de novas diferenciações analógicas, já que é princípio básico de hermenêutica jurídica que as exceções devem ser interpretadas de modo estrito. Se assim for, a concessão de descontos privilegiadores às mulheres em casas noturnas afronta o princípio geral de igualdade constitucional e não se enquadra em nenhuma das exceções constitucionalmente elencadas.
Mas não é tão simples assim. Poderia haver, via ampliação teleológica, outros casos de diferenciação aceitáveis entre os sexos? Sim, lembremos que a norma da igualdade no artigo 5o caput e inciso primeiro possuem a natureza não de regra jurídica estrito senso - como aquelas que dizem clara e objetivamente o que deve ser feito - mas de princípios, isto é, de vetores de inspiração a criação e interpretação de normas infraconstitucionais. Uma regra jurídica costuma ter a estrutura do artigo: a licença-gestação será de 120 dias (art. 7o, XVIII, da CF). Quando uma regra jurídica não é clara, podemos criticar a técnica do legislador. Mas há normas jurídicas que não podem ser claras, pois não se destinam a orientações pontuais, mas são princípios que devem ser efetivados da melhor maneira dentro das possibilidades sociais. Um princípio constitucional não manda que se faça X, manda que X seja levado em consideração da forma mais ampla possível, desde que compatível com outros princípios igualmente constitucionais. Portanto a expressão "nos termos da Constituição" não é limitadora de outras diferenciações entre homens e mulheres, mas apenas de diferenciações que não tenham por objetivo final tornar mais igualitária a situação entre os dois sexos. Assim, o fato de não estar previsto na Constituição Federal, não torna de per si inconstitucional o desconto dado às mulheres em casa noturnas. O que o tornaria inconstitucional é se tal desconto não pudesse ser razoavelmente justificável dentro de uma teleologia da igualdade.
Já houve tempo em que se alegava que os citados princípios constitucionais dirigiam-se apenas ao Estado e ao legislador, mas não aos particulares, já que estes possuiriam maior grau de autonomia. Assim, um espetáculo público não poderia conceder descontos a mulheres, apenas por serem mulheres, mas uma empresa privada, sim. Mas, modernamente, como salienta Canotilho [05] essa interpretação está superada. O princípio da igualdade vincula a todos: legislador, juízes, administradores públicos, empresas e pessoas físicas. A autonomia da vontade particular é, lembremos, residual, imperando apenas nos termos em que o ordenamento constitucional, guardião dos interesses sensíveis do Estado e da sociedade, permite. Assim, não há como justificar pelo direito de liberdade individual práticas que o ordenamento jurídico repudie. Resta saber é se os chamados descontos de natureza sexual incluem-se em tais práticas constitucionalmente repudiadas.
Quem paga a conta dos descontos dados às mulheres? As casas noturnas? Certamente que não. Na composição dos custos do estabelecimento, esses descontos são transferidos para os clientes integralmente pagantes: os homens. As casas noturnas oneram um sexo em benefício do outro. Repete-se aqui a regra geral dos subsídios: se alguém os recebe, outro alguém tem sua conta majorada. Certamente, muitos homens poderiam estar dispostos a subsidiar as mulheres em termos de ingressos e descontos. Mas pode-se presumir em grau absoluto tal disposição, transferindo-se a conta de um consumidor (mulher) a outro (homem)?
Os donos de casas noturnas poderiam alegar, então, que homens dão efetivamente mais gastos aos seus estabelecimentos. E que assim, não se estaria desigualando os sexos por mera conveniência, mas por fundamentos razoáveis: quem dá mais gasto, deve pagar mais. Se tal argumento correspondesse à verdade dos fatos, não haveria por que censurar o desconto dado às mulheres: elas dão menos ônus ao estabelecimento e, por isso – e não por serem mulheres – fazem jus a um bônus. O problema é que o maior gasto dado pelos homens é presumido. O Código de Defesa do Consumidor diz que quem consome tem o direito de saber, concretamente, o que está comprando, de pagar apenas pelo que usa, proibindo-se vendas casadas e coisas do gênero. Mulheres pagam menos consumação porque, por exemplo, bebem menos. Isso pode geralmente ser assim, mas o homem abstêmio deve ser forçado a arcar com a conta da mulher alcoólatra? Pela presunção das casas noturna, sim.
De fato o grande mote dos descontos preferenciais a mulheres é que as casas noturnas as utilizam como chamarizes de clientes homens. Esse é o objetivo básico da desigualação feita nos preços cobrados de homens e mulheres. Tal objetivo é compatível com nossa ordem constitucional? Certamente que não. A pretexto de conceder gentilezas às mulheres, perpetua-se a idéia de que estas podem ser utilizadas como objetos promocionais, subsidiadas, via descontos e tratamentos preferenciais, para atraírem clientes homens. Ora, quando a Constituição admite certas distinções entre homens e mulheres é sempre no sentido de aumentar a cidadania subjugada que a condição feminina historicamente amarga, e nunca para conceder regalias simpáticas, mas de cunho perpetuador da objetificação feminina.
Se há, e muitas há, mulheres que ganham menos que homens, que se criem descontos por faixa de renda; se há, e como há, mulheres que bebem menos que homens, definam-se melhor os critérios de consumação. Agora dar descontos preferenciais às mulheres porque estas atraem homens para as casas noturnas é mais do que ferir a ordem constitucional posta, é atentar contra a dignidade feminina.
O Olodum objetivava simplesmente facilitar o acesso de negros à cultura, dando-lhes descontos preferenciais. Nossos pruridos constitucionais imediatamente se manifestaram. Parecia uma afronta clara, claríssima, à isonomia. Mas, a rigor, não era. Era uma questão constitucionalmente polêmica, já que a intenção (o telos) da desigualação operada era a promoção final de uma maior igualdade entre as raças. Já o tratamento desigualitário favorescente às mulheres dados pelas casas noturnas não pode, como vimos, apelar a nenhuma causa nobre de maior igualação final entre os sexos. Desiguala-se para auferir lucros e ponto. Desamparada por um objetivo constitucionalmente razoável, tal distinção deveria provocar em nós uma espécie de repulsa constitucional. Mas não provoca. E enquanto condenamos a excepcionalidade de medidas como a do Olodum, aceitamos, passivos, os ataques às desigualdades cotidianas.
Bibliografia
BASTOS, celso Ribeiro. Princípio da igualdade. In: BASTOS, Celso R. e MARTINS, Ives Granda. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989.
CANOTILHO, José J. G. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel Derecho, 1989.
MACIEL, Eliane C. B. de Almeida. A igualdade entre os sexos na Constituição de 1988. Disponível em http://www.senado.gov.br/conleg/artigos/especiais/AigualdadeEntreosSexos/ . Acesso em 21 de agosto de 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997.
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Funjab/UFSC, 1992.
SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
SELL, Sandro César. Existem raças humanas? Disponível em http://sandrosell.blogspot.com/
SINGER, Peter. A Companion to ethics. Balckwell Companion to Philosophy. Oxford: Blackwell Publications, 1995.
Notas
01 BASTOS, Celso Ribeiro. Princípio da igualdade. In: Bastos, C. R. & MARTINS, I. G. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989.
02 SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Funjab/UFSC, 2002.
03 Ver, por exemplo, Celso Antônio Bandeira de Mello. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997.
04 MACIEL, Eliane C. B. de Almeida. A igualdade entre os sexos na Constituição de 1988. Disponível em http://www.senado.gov.br/conleg/artigos/especiais/AigualdadeEntreosSexos/ . Acesso em 21 de agosto de 2006.
05 CANOTILHO, José, J. G. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2004.

4 comentários:

Maurício Mello disse...

Boa tarde professor Sandro.
Como não sabia o e-mail do senhor, decidi entrar em contato por mensagem através do seu blog.
Sou seu aluno no CESUSC, de penal I, e gostaria de perguntá-lo a respeito das questões (ou guia de leitura) para auxiliar no estudo do livro "A imputação objetiva no direito penal". Posso encontrar este material no seu blog ou no sistema acadêmico?
Att,
Maurício Mello

Marco Auélio Garcia Julião da Silva disse...

Querido Professor Sandro, gostaria de aproveitar a raríssima oportunidade de poder discordar do senhor para ponderar alguns questionamentos e levantar outras dúvidas. Gostaria de expressar minha passividade com relação aos descontos "mulheres free". Digo passividade pois acredito ser muita audácia a concordância com isto, mas exagero a discordância. Acredito que quando uma mulher frequenta um ambiente que se utiliza do "mulheres free" para certo algum tipo de proveito, as supracitadas estão concordando com o possível "atento à dignidade feminina", tendo em vista que estas, indubitavelmente, não são obrigadas a adentrar no recinto e, desta forma, concordam com este atento. Como esporadicamente frequento lugares que utilizam o tal "mulheres free" para qualquer objetivo lícito, posso afirmar que quem tira real proveito da situação são elas, e não eles. São elas quem entram de graça, e não precisam fazer nada lá dentro que não queiram para compensar este "privilégio" que literalmente as foram dadas. Da mesma forma, os homens concordam com este artifício utilizado pelas casas noturnas quando pagam para entrar num destes ambientes, quando de maneira nenhuma são obrigados à fazê-lo. Quando homenes e mulheres frequentam ambientes que se utilizam do "mulheres free" para qualquer objetivo, ambos sentem-se, em sua maioria esmagadora, beneficiados de alguma forma. Sejam as mulheres por não pagarem, ou os homens por frequentarem um ambiente com maior presença feminina.
Aproveitando o embalo, gostaria de saber a opinião do senhor com relação às casas noturnas que estabelecem o pagamento de uma consumação mínima para entrada em suas dependências. Ao meu ver, além de colaborarem em muitas vezes para o uso exagerado do álcool (produto com maior índice de consumação em bares e casas notunras), forçam o cliente a entupirem-se de algo para não sair num habitual prejuízo. Acredito ser, isto, um absurdo, tanto para mulheres, quanto para homens, sejam eles brancos(as) ou negros(as). Um abraço de um grande admirador.

Marco Aurélio Garcia Julião da Silva disse...

Caso o senhor tenha disponibilidade para uma resposta sobre meu questionameto final, meu e-mail é marcoaurelio.gjs@hotmail.com, ou caso o senhor prefira uma discussão em sala de aula, sou seu aluno de Direito Penal I, da sala DID 31 da Cesusc.

Desde já agradeço a atenção,
Um abraço.

Anônimo disse...

Professor Sandro sou aluna da primeira fase de Direito da Univali, unidade Biguaçu, gostaria de saber seu endereço de email, para estar lhe enviando as respostas desta atividade sobre descontos sexuais.Não pude lhe entregar pessoalmente por motivos de falecimento.
obrigada.
Patrícia Olívia Borges.
patthyedu@hotmail.com