sexta-feira, 5 de junho de 2009

A etiqueta do crime



Considerações sobre o "labelling approach"
Texto extraído do Jus Navigandihttp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10290


Receita indigesta
Os criminosos são, em grande medida, uma invenção do sistema de repressão penal; ao contrário do que pensa o senso comum, eles não são simples seres malvados, que andavam livres sobre a terra até que o Direito os descobriu e que, desde então, tenta, por meio das penas, neutralizá-los. Não, os criminosos não são produtos de descobertas, mas sim entes inventados pela lógica distorcida do sistema penal vigente. Para quem foi embalado pelo modelo etiológico – aquele do criminoso enquanto ser anormal - as afirmações acima podem parecer tão estranhas quanto acusar o sistema de saúde pública de ter criado os doentes, e é por isso que a primeira impressão que se costuma ter diante da abordagem criminológica que as subscreve, o labelling approach, é a de estarmos diante de uma das muitas teorias da conspiração, aquelas paranóicas construções teóricas destinadas a apontar conluios maquiavélicos que dirigiriam, sub-repticiamente, as instituições centrais de nossa sociedade, como o Direito e o Estado. O sistema penal inventar criminosos, onde já se viu...



Mas antes de desenvolver uma antipatia irreversível pelo labelling approach, municie-se de algumas informações que dão o que pensar. A primeira é a cifra oculta, ou seja, a constatação de que há muito mais condutas praticadas contra o direito criminal do que o sistema penal tem condições de investigar e processar. Isso significa que muitos cometem crimes, mas apenas alguns serão ditos criminosos (ninguém é criminoso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, lembra?). A segunda: há, mesmo proporcionalmente, muito mais pobres nas cadeias do que membros de outras classes. Da primeira afirmação podemos concluir que muito mais gente mereceria ser chamada de criminosa em relação àquelas que efetivamente são. Da segunda, inferimos que, não podendo perseguir a todos, o sistema penal persegue prioritariamente os mais pobres. Somem-se a isso contradições como a seguinte: se há tantas críticas ao sistema penal brasileiro, de que há excesso de recursos e procedimentos que inviabilizam, por exemplo, a prisão do político desonesto, por que os estratos mais marginalizados da população caem tão facilmente atrás das grades? Por que essas dificuldades que o jurista conformado diz ser "inerente ao processo" somem no andar debaixo? Mistério...

Cifra oculta, dificuldade em criminalizar os ricos, excesso de pobres nas cadeias, esses são os ingredientes básicos da receita de como produzir criminosos. Reserve essas informações. E vamos em frente.


São seus olhos
Surgida nos EUA da década de 1960, a teoria do labelling approach, ou teoria do etiquetamento, sofreu uma forte influência do interacionismo simbólico, corrente sociológica que sustenta que a realidade humana não é tanto feita de fatos, mas da interpretação que as pessoas coletivamente atribuem a esses fatos. Isso significa, entre outras coisas, que uma conduta só será tida como criminosa se os mecanismos de controle social estiverem dispostos a assim classificá-la. O que é um crime, então? Crime, pelos menos em seus efeitos sociais, não serão, como ensinava o dogmático penalista, todas as transgressões injustificadas à lei penal. Não, crimes são apenas as condutas que a sociedade e seus órgãos punitivos decidem perseguir como tal. Sem certo consenso de que determinada conduta suspeita deve ser averiguada, que determinados fatos e indícios devem ser convertidos em um processo penal, não haverá, em seus efeitos práticos, crime.


Era isso que H. Becker, um dos principais expoentes da abordagem do etiquetamento, queria dizer quando sustentava que o desvio não está no ato cometido, nem tampouco naquele que o comete, mas que o desvio é a conseqüência visível da reação social a um dado comportamento. Ser desviante, ou criminoso, é, assim, o resultado de um etiquetamento social, e não o corolário lógico de uma conduta praticada. É possível, como bem sabemos, infringir as normas penais sem que se seja criminalizado. Pense-se, sobretudo, nas milhares de condutas presumivelmente delituosas das elites brasileiras, não investigadas por falta de "vontade" das autoridades competentes. Também não é incomum haver processos de criminalização sem que haja certeza acerca da autoria da conduta típica – pense nas investigações apressadas, nas exposições abusivas da imprensa, e nos processos judiciais mal conduzidos contra suspeitos miseráveis. Não, o crime não é algo que se faz, mas uma determinada resposta social a um algo supostamente feito.


O crime, portanto, não emerge naturalmente a partir de uma conduta proibida praticada por um agente imputável (modelo dogmático), nem resulta diretamente de uma conduta proibida praticada por um ser anti-social (modelo etiológico), mas é o resultado de uma interpretação sobre que aquela conduta, vinda daquela pessoa, merece ser classificada como crime. Exemplifica-se. Imaginemos uma mulher que tenta sair de uma joalheria com um caro e não pago bracelete quando é barrada pelos seguranças. Se essa aparente tentativa de subtração à coisa alheia móvel (art. 155 do Código Penal) será tomada como crime, sintoma compreensível de cleptomania ou mera distração, vai depender menos dos detalhes da conduta tentada do que do perfil da apontada infratora. A tese da distração cai bem, por exemplo, se a suposta tentativa fosse realizada por uma cliente habitual da joalheria; assim como a tese da cleptomania se adequaria perfeitamente se a acusada fosse uma famosa atriz de novela. Já para uma empregada da loja, a única tese "compatível com a realidade das coisas" é a de tentativa de furto puro e simples. A conduta é a mesma, a ausência de provas também, só o que variará, neste caso, são as suposições socialmente consideradas adequadas ao caso.


Crenças presumidamente lógicas, mas claramente ideológicas na proteção dos mais poderosos é que resolverão a questão. "Acreditamos ser um sintoma de cleptomania" – diz em nota o dono da loja – "pois é ilógico crer que uma pessoa de elevada posição social iria se rebaixar a ponto de furtar uma jóia". Eis aí uma declaração coerente com o imaginário popular de que o furto é delito exclusivo de pessoas pobres. Ora, se a cleptomania é um transtorno psíquico, sua manifestação não se ligará ao fato de se poder pagar ou não pelo bracelete, mas à compulsão de tê-lo sem pagar. Assim, a condição de ser pobre ou rico, clinicamente, não deveria importar. Ou esse transtorno é exclusivo de quem ganha acima de tantos milhões por ano? Mesmo o DSM IV (o manual de psiquiatria norte-americano) parece induzir a essa crença, ao colocar que o furto na cleptomania costuma ser de um bem de pouco valor monetário, relativamente às posses de seu praticante. Mas isso se deve à orientação corrente, a bem da sociedade, de que o diagnóstico para a cleptomania deve ser residual, só devendo prevalecer se não for mais bem explicado por outro transtorno de conduta. Rasteiramente: se a pessoa não precisava do que furtou, ganha força a tese da cleptomania; se precisava, deve ser furto mesmo.


Políticos e corruptos de elite defendem-se da mesma forma: "Não preciso roubar." Se, ao longo do mundo e, particularmente neste país, só se apropriasse dos bens alheios quem precisasse, o universo das finanças públicas seria esplendidamente superavitário. Ao contrário, se todos os necessitados passassem a roubar, a vida num país de tantos miseráveis como o Brasil seria insuportável. Para o mal ou para o bem, a lógica do "como sou rico, não roubo"/ "como sou pobre, roubo" não guarda relação com os fatos: apenas com ideologias. E é dessa ideologia que se beneficiarão a socialite e a atriz para explicarem que um bracelete não pago, em seu poder, na saída da loja, só pode indicar distração ou sintoma clínico; furto nunca. Mas essa mesma ideologia selará o futuro da empregada, sobre a qual a tese da distração, ou doença, será vista como uma afronta à inteligência dos personagens que conduzem seu indiciamento criminal. Logo o delegado a lembrará que "não nasceu ontem!".


Então o que é um criminoso? Criminoso é aquele a quem, por sua conduta e algo mais, a sociedade conseguiu atribuir com sucesso o rótulo de criminoso. Pode ter havido a conduta contrária ao Direito penal, mas é apenas com esse "algo mais" que seu praticante se tornará efetivamente criminoso. Em geral, esse algo mais é composto por uma espécie de índice de marginalização do sujeito: quanto maior o índice de marginalização, maior a probabilidade de ele ser dito criminoso. Tal índice cresce proporcionalmente ao número de posições estigmatizadas que o sujeito acumula. Assim, se ele é negro, pobre, desempregado, homossexual, de aspecto lombrosiano e imigrante paraguaio, seu índice de marginalização será altíssimo e, qualquer deslize, fará com que seja rotulado de marginal. Em compensação, se o indivíduo é rico, turista norte-americano em férias, casado e branco, seu índice de marginalização será tendente à zero. O rótulo de vítima lhe cairá fácil, mas o de marginal só com um espetáculo investigativo sem precedentes.


Não é o que se faz, mas o que se é
Contrariando os manuais acadêmicos, o labelling approach sustenta que é mais fácil ser tido como criminoso pelo que se é do que pelo que se faz. Essa afirmação ganha força quando nos lembramos da cifra oculta, nomenclatura que destaca que as condutas delituosas que chegam a virar processos judiciais constituem apenas a ponta do iceberg do total de condutas ilícitas efetivamente existentes em uma sociedade. Se nem tudo que, pela leitura da lei, deveria ser tido como crime assim é reconhecido pela prática dos operadores do sistema penal, deve haver um critério de seleção para decidir entre tantas condutas ilícitas praticadas quais serão, de fato, tratadas como crime. O labelling approach sustenta que tal critério é o índice de marginalização do sujeito, o número de estigmas que ele carrega, ainda que nenhum deles precise ser de natureza criminal. Nesse sentido, o sistema penal não teria a função de combater o crime, mas a de atribuir rótulos de criminosos aos já marginalizados.


Pensemos em duas pessoas viajando num ônibus. Escondida entre as poltronas das duas encontra-se um pacote contendo droga ilícita. Não se sabendo a qual delas pertence, investigam-se ambas. As duas se dizem inocentes e os indícios colhidos não são esclarecedores. Investiga-se quem são elas. O da direita é contabilista, empregado da mesma empresa há 10 anos, pai de família, de paletó e gravata. Já o da esquerda é um surfista, sustentado pelos pais, com um piercing na sobrancelha. Basta saber em qual dos dois seria mais fácil acrescentar o rótulo de criminoso para saber quem será mais enfaticamente investigado. Um rótulo predispõe ao outro. Surfista desocupado e traficante combinam muito mais facilmente do que contabilista empregado e traficante (pelo tirocínio de alguns policiais, quem tem menos dinheiro para viver tem mais dinheiro para comprar drogas). Na prática, em situações como essas, sabe-se que o Estado se lembrará, de fato e de direito, que é seu dever provar a eventual culpa do contabilista antes de sair alardeando que achou o culpado. É o que manda a lei. No entanto, com uma freqüência assustadora, diante do surfista desocupado o ônus se inverterá, cabendo ao este demonstrar sua inocência, trocando-se a presunção de inocência determinada pela lei pelas regras da pragmática repressiva.




O rótulo de marginal parece não ter aderência direta à pele dos indivíduos. Para aderir, necessário é que tais indivíduos primeiro tenham sido selados com outros rótulos estigmatizantes, é preciso que seu índice de marginalização seja alto. É assim que o processo contra o político desonesto quase nunca concluirá nada. As recorrentes alegações de ausência de provas, de cerceamento de defesa e a demora na ação, que levará à prescrição "sem julgamento de mérito", o favorecerão antes que o rótulo de criminoso possa-lhe ser impingido. Já para investigar, processar e encarcerar um indivíduo pobre, o sistema repressivo é rápido e quase infalivelmente condenatório. É que a base onde fixar o rótulo de marginal já existia: a própria pobreza. Todos esperavam a condenação e ela veio. Nenhuma surpresa.


Ladeira escorregadia
Um estigma predispõe ao outro. É como uma ladeira escorregadia: uma vez tendo descido o primeiro degrau da exclusão (ser pobre, desempregado, bicha, preto ou prostituta) é preciso ter muito cuidado para não descer mais outro e outro, até chegar ao final do processo excludente, sintetizado no rótulo de criminoso. É assim que comentários aparentemente causais-explicativos são dados na mídia quando se descobre, por exemplo, que o assassino era homossexual. Na leitura popular há um continuum do tipo: homossexual, pervertido, criminoso. Já se esperava. Da mesma forma, tudo parece estar esclarecido quando se descobre na casa do acusado de assassinato uma coleção de filmes pornográficos – que a autoridade exibirá como se fosse de relevância crucial à prova que lhe cabe buscar. A mente cozida em folhetins policiais, amiúde, segue uma nefasta lógica do tipo: gosto por pornografia = perversão = a predisposição assassina. Esse é um expediente que encanta a platéia, ávida por curiosidades e aberrações, e permite disfarçar a ausência de competência probatória do espetáculo.




Mas, é bem verdade, que um estigma não leva a outro apenas por efeito de um etiquetamento desonesto. Não, um estigma efetivamente pode levar a outro, porque quanto mais estigmas alguém carrega menos custoso lhe será assumir outros. Basta lembrar que todo estigma é uma depreciação no valor social de alguém. Assim, quanto mais estigmas esse alguém tiver menos socialmente ele valerá, tendo pouco a perder ao se dispor a assumir mais um rótulo depreciativo. Um sujeito marginalizado é mais facilmente recrutado para os modos de vida ilícitos. Depois de ter perdido o lar e a escola, é relativamente pouco custoso ao adolescente embrenhar-se no mundo das infrações, quer seja assumindo a culpa de outrem, quer seja efetivamente tomando parte na ação criminosa. A partir do momento em que desse adolescente já "não se esperava grande coisa", abriu-se o convite para que dele se esperassem as piores coisas. Cada estigma aumenta a vulnerabilidade do sujeito às demandas do mundo do crime.


A quem já está no inferno – infere a lógica popular – custa pouco dar um abraço no diabo. Se já não se tem muito a perder, pode-se, com poucos receios, arriscar perder tudo, pois, em se tratando de dignidade, o valor de cada um de seus componentes decresce à medida que decresce seu todo. É preciso ter a honra geral intacta para que se possa ser desonrado em aspectos específicos. Mesmo o Direito civil segue essa crença. Assim, tradicionalmente será maior o valor da indenização estética de um dano produzido contra um rosto intacto, bonito, sem cicatrizes, do que se o mesmo dano fosse produzido contra um rosto já marcado e deformado. A lógica da reparação civil, neste caso, é bíblica: muito será dado a quem muito já tem (ou teve). Em forma de exemplo, quem não possui os dentes incisivos não deverá sofrer tanto com a perda de um dos caninos – sofrimento considerado terrível para aquele que tem uma dentição perfeita. Para as questões de estigma, esse critério de reparação civil parece aplicável: quanto menos respeito social se possui menos custoso é perder esse resíduo de dignidade.




A sociedade cria o marginalizado de forma a deixá-lo a apenas um passo da marginalidade. É assim que o dito crime organizado – comandado por pessoas nem um pouco excluídas – pode recrutar tão facilmente pobres, negros e miseráveis para fazer a parte suja e arriscada do tráfico. Recrutam-se pessoas cuja dinâmica da sobrevivência desceu ao nível do "se for preso, azar" ou "se morrer, morreu". Pessoas que já não têm o que perder. Tire de uma pessoa uma boa parte de sua dignidade social e ela facilmente se encarregará de acabar com o resto, pois quanto mais baixa é a sua posição na sociedade, menor são suas alternativas de vida honrosa e menores são também os custos simbólicos de sua entrada no mundo do crime. Uma exclusão abre caminho para a outra e assim sucessivamente.

Embora um estigma possa facilitar a entrada em outro, isso não autoriza os acusadores públicos a fazerem uma dedução simplista de que quem já tem pouco a perder foi o responsável pelo crime de autoria incerta. Seria inverter causa e conseqüência. Ora a prostituta, por exemplo, tem pouco a perder acrescentando ao seu métier ações criminosas (como o pequeno tráfico de entorpecentes) justamente porque, mesmo antes de entrar no crime, já era tratada como se fosse criminosa. Se uma pessoa não perdesse a dignidade por ser prostituta, não lhe cairia facilmente o rótulo de criminosa diante de uma acusação mal fundamentada. É justamente porque a sociedade faz com que um estigma leve a outro que eles efetivamente seguem essa lógica. Num exemplo inverso, o médico viciado em morfina, que tendo acesso fácil à droga, e horários de plantão para disfarçar seu vício, será capaz de conservar sua dignidade de pessoa honesta e produtiva, não sofrendo os efeitos da marginalização. É viciado apenas, sendo razoável supor que repudiaria propostas criminosas – como traficar, furtar, matar – como qualquer outra pessoa. A lógica não é, portanto, a de que uma conduta ilícita leve a outra, mas a de que uma situação de marginalização seja um efetivo convite a que se abrace outra.




O que serve como explicação sociológica da entrada facilitada dos marginalizados no mundo crime, não serve como recurso simplificador dos procedimentos de investigação criminal. A conclusão de uma investigação criminal não pode se apoiar em máximas do tipo: "Dentre os acusados, é criminoso aquele que possuir o maior índice de marginalização." Assim, é um absurdo que certos delegados diante de uma morte violenta e incerta numa favela, sem saber quem é a vítima e seu autor, sem nada saber daquele crime especificamente, digam com estúpida convicção ao repórter da TV: "provável envolvimento com o tráfico de drogas", como se a morte dos que vivem em favelas não pudesse decorrer de motivos passionais, vingança pessoal, motivos fúteis, crimes patrimoniais, familiares etc. para acontecer; ali se morre apenas por ação do tráfico. A platéia social novamente gosta e o espetáculo pode ser conduzido de qualquer forma, pois quem se importa com tão desqualificado morto? Agora, diante da morte do político que ia depor num processo criminal no dia seguinte, alardeando que entregaria muitos nomes de pessoas importantes, o mesmo delegado seria pateticamente cauteloso: "Todas as hipóteses, inclusive de crime por motivações políticas, estão sendo averiguadas". É que, particularmente no Brasil, ricos podem morrer de muitas formas; pobres apenas da forma que menos trabalho der à investigação.

Só não paga quem pode
Nos desdobramentos teóricos do labelling approach, o que chamamos de imputação criminosa seria, na verdade, o resultado de duas distorções, sintetizadas sob o sugestivo nome de "processo de criminalização". Na primeira distorção, há a chamada criminalização primária, feita, sobretudo, pelo legislador penal, que consiste na eleição de condutas a serem consideradas criminosas não pelo critério do dano social que provocam, mas pela origem habitual dos que praticam tais condutas. Um exemplo paradigmático neste sentido é expresso pelo artigo 176 do Código Penal brasileiro que incrimina aquele que, dentre outras condutas, toma refeição em restaurante "sem dispor de recursos para efetuar o pagamento". Sim, você leu certo, só há crime se quem tomou a refeição no restaurante não tinha dinheiro para pagá-la, mas se ele dispunha de recursos para tal e simplesmente preferiu não efetuar o pagamento não poderá ser incriminado.


O objetivo dessa lei não é, como então fica óbvio, evitar danos ao patrimônio alheio, nem convencer as pessoas a que paguem a refeição tomada, mas evitar que os mais pobres possam se "aproveitar" de sua pobreza. A jurisprudência confirma: "Para configurar-se o crime, é necessário que o agente faça a refeição sem ter dinheiro para pagá-la; se tem recursos, mas não paga, como acontece nos ‘pinduras’ estudantis, o ilícito é só civil e não penal" (TACrSP, Julgados 90/83).


Ao criar leis, portanto, há um processo de criminalização primária, resultante da intolerância legislativa com a conduta dos mais pobres. Quando falamos de criminalização primária, falamos, em síntese, de duas coisas:
a) O crime não é uma realidade natural, descoberta e declarada pelo Direito, mas uma invenção do legislador, algo é crime não necessariamente porque represente uma conduta socialmente intolerável, mas porque os legisladores desejaram que assim fosse;b)E essa invenção segue critérios de preferência legislativa, cujos balizamentos não costumam respeitar princípios de razoabilidade ou proporcionalidade, gerando leis penais duríssimas contra as condutas dos mais pobres e rarefeitas em se tratando de crimes típicos dos estratos sociais elevados.

Na segunda distorção, chamada de criminalização secundária, entram em ação os órgãos de controle social (polícia, judiciário, imprensa etc.) que, ao investigarem prioritariamente os portadores de maior índice de marginalização, acharão – por óbvio – um maior número de condutas criminosas entre eles. Se mais vezes os pobres são tidos como suspeitos, se condições como possuir emprego e residência fixa influenciam nos rumos do processo penal, se muitos dos advogados que defendem os mais pobres chegam tarde às audiências e demonstram pouco interesse nessas causas, se não ter um modelo familiar idêntico ao das classes de onde provêm os juízes e seus auxiliares facilita, sobremaneira, o rótulo de "proveniente de família desestruturada", se ter um passado tortuoso é capaz de suprir a ausência de provas na presente acusação, então, não há outra saída: os marginalizados serão facilmente convertidos em marginais. A etiqueta penal lhes aderirá à pele, e dela jamais sairá.

Em síntese, o labelling approach atuou como um despertador inconveniente no sono do penalista dogmático, que jurava que o Direito penal nada mais fazia do que nos proteger de pessoas essencialmente más. Ao contrário, o labelling veio para mostrar que nosso tipo habitual de criminoso – pobre e encarcerado – revela muito pouco sobre a estrutura do mal em si, e muito, mas muito mesmo, sobre a ideologia desigualitária de nossa sociedade.



Bibliografia:
ANDRADE, V. R. P. (2003). Sistema penal máximo vs. Cidadania mínima. Porto Alegre: Do Advogado.
BECKER, H. (1978). Los estraños. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo.
BERGER, P. L. e LUCKMANN, T.(2000). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes.
Farrington, D. (1991). Psychological contributions to the explanation of offending. Issues in Criminological and Legal Psychology. Vol. 1, n.º 17, 7-19.
GOFFMAN, E. (1988). Estigma. Rio de Janeiro: Guanabara.
LOMBROSO, C. (1969). L’uomo delinqüente. Roma, s.ed.
SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.
ZAFFARONI, E. R. & BATISTA, N. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
XIBERRAS, M. (1996). As teorias da exclusão. Lisboa: Instituto Piaget.

Sobre o autor
Sandro César Sell é autor dos livros: "Comportamento social e anti-social humano" (Ijuris, 2006) e "Ação afirmativa e democracia racial" (UFSC, 2002).

E-mail:
sandrosell@ig.com.br Home-page: sandrosell.blogspot.com
Sobre o texto:Texto inserido no Jus Navigandi nº1507 (17.8.2007)Elaborado em 08.2007.
Informações bibliográficas:Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:SELL, Sandro César. A etiqueta do crime: considerações sobre o "labelling approach". Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1507, 17 ago. 2007. Disponível em: . Acesso em:
document.write(capturado());
19 ago. 2008.

Função das penas criminais

Como toda instituição humana, as penas criminais podem ter objetivos declarados e objetivos latentes. Declarados são os objetivos formalmente aceitos e explicitados. Já os objetivos latentes são aqueles que, embora não se mencione (ou mesmo se os negue) são os efetivamente alcançados pela lógica subjacente à instituição. Assim, por exemplo, dois dos objetivos declarados do sistema penal brasileiro são o de ressocializar o condenado e o de dar segurança à população. Mas o estado permanente de nossos presídios, com seus ambientes insalubres e controlados por organizações violentas (formada por condenados e, não raro, por agentes públicos de segurança), a par com a estigmatização perene do ex-detento (que nunca deixará de ser visto como um ser nocivo pela sociedade) formam um emaranhado de fatores que permite inferir que a prisão produz mesmo é o crescimento dos atos de delinquência, seja em gravidade ou em número.

Nesse sentido, em desacordo com lema popular de “mais prisões mais segurança” (esperança depositada nas funções manifestas do cárcere), o que o crescimento deste sistema tem produzido, na prática, é a sua própria repetição a partir da reincidência crônica, agudização da periculosidade de seus egressos e, o mais grave, a organização em forma de máfias da menos nociva criminalidade de varejo. A prisão no Brasil tem sido exemplo esdrúxulo de cessão de espaço público para que criminosos possam fortalecer vínculos e coordenar ações da grande lesividade social.

Outra função declarada, mas jamais cumprida, da pena de prisão é a sua promessa de restringir de todos os que cometem delitos, tidos como graves, o mesmo bem humano e genérico: a liberdade, cujo valor em tese, é igual para ricos e pobres. No entanto, na prática, o cárcere é residência quase que exclusiva dos mais vulneráveis socialmente, destinado aos autores da chamada criminalidade tosca, sem grande elaboração mental. Os mais ricos só como exceção (que confirma a regra oposta) precisam temer que lhes seja suspensa a liberdade. Assim, o que se realiza, nesse aspecto, na prisão, é apenas a função latente: ameaçar e castigar violentamente os mais pobres por terem ousado transgredir as leis penais, o que parece ser privilégio ancestral das elites.

No entanto, se o sistema é com certeza falho, há dúvidas sobre se a alternativa viável seria aboli-lo por completo, - ou chegar muito próximo a isso. Porém, antes de tomadas de posições drásticas, é preciso ter muito claro o debate entre os especialista acerca da finalidade que um sistema prisional em funcionamento eficaz deveria ter.

Vamos a isso.

Visão esquemática dos objetivos declarados da pena de prisão

Objetivo I:

Vingança pública (= Fazer sofrer o criminoso)
A pena: é uma compensação à vítima, por meio do sofrimento do autor do delito (“o criminoso deve pagar pelo que fez”), e uma alternativa de reconciliação entre o criminoso e a sociedade (“dando-lhe chance de expiar o mal”) .

Direcionada: ao criminoso e, simetricamente, às suas vítimas.
Razões alegadas:

- O criminoso deve sofrer, proporcionalmente, o mal que causou às suas vítimas.
- O sofrimento do criminoso é um direito das vítimas e as ajuda a superar a dor do ultraje sofrido. - A pena permite a expiação do mal feito, possibilitando ao condenado à recuperação de seu status de cidadão sem dívida com a sociedade.

Tradução popular: “Nós queremos que o criminoso pague pelo que fez.”

Críticas:
- O Estado não pode se igualar ao criminoso, agindo contra ele de forma semelhante a que ele agiu contra suas vítimas, sob pena de perder a legitimidade moral.
- Medir a pena pelo sofrimento em espécie causado à vítima é ilusório e injusto. Ilusório porque o sofrimento da vítima – ou de seus familiares – é subjetivo, único e não neutralizável pela dor imposta ao culpado. Injusto porque, medida pelo sofrimento da vítima, um homicídio culposo (não intencional) mereceria a mesma pena que um homicídio doloso (feito com clara intenção matar) já que, por exemplo, a dor da mãe enlutada não costuma ser sensível às nuanças de intenção do autor do delito. Intenções que são justamente a base de nosso sistema de responsabilização penal.
- No caso de crimes sem vítimas concretas (como porte ilegal de armas ou de drogas), ou de difícil especificação das vitimas (tráfico de drogas, corrupção etc.) fixar a pena com base no sofrimento causado torna-se um procedimento aleatório, nebuloso e, por isso mesmo, arbitrário, contrariando as mais elementares noções de segurança jurídico-penal.
- Em casos de crimes patrimoniais puros, a dor (que é um dano monetário objetivo) seria mais eficientemente neutralizada por indenizações pecuniárias às vítimas (pagas pelo condenado ou, caso ele não possa fazê-lo, pelo Estado, como decorrência de sua falha em garantir a segurança dos cidadãos).
- Além disso, alguns estudos sugerem que as vítimas sentem-se melhor quando conseguem perdoar seus ofensores do que quando têm a oportunidade de vingarem-se deles.

Objetivo II
Prevenção especial negativa (= Tirar o criminoso de circulação)
Direcionada: ao criminoso e à proteção de vítimas futuras.

Razões alegadas:
- A pena serve para neutralizar o criminoso, mantendo-o à distância de novas vítimas.
- A sociedade não deve renovar votos de confiança naquele que já a lesou gravemente.

Tradução popular: “Preso, ele não incomoda mais!”

Críticas:
- “Enjaular” o criminoso, simplesmente, é uma medida paliativa quanto à segurança da sociedade. Em países como o Brasil, onde não há prisão perpétua, passado certo tempo (30 anos no máximo) haverá o retorno do condenado à sociedade que, pelos efeitos deletérios do cárcere, tenderá a voltar mais propenso ao delito do que quando nele entrou.
- Ademais, revela uma visão negativa do ser humano, aproximando-o de feras que não podendo ser “domesticadas” devem permanecer trancafiadas pelo máximo tempo possível.
- O tempo de pena do autor tem que ser regulado pelo crime que ele cometeu e não pelo mal que a sociedade acredita que ele possa vir a fazer. Em outras palavras, não se podem aplicar penas presentes justificando-as por eventuais crimes futuros. O crime é o pressuposto lógico-jurídico da pena e não o contrário.
- Somente penas como a de morte ou a perpétua seriam coerentes com a proposta neutralizadora.
- Some-se a isso que, para neutralizar o condenado, o sistema prisional deveria ser não apenas à prova de fugas, quanto capaz de evitar que de dentro de suas grades o crime fosse despachado para a sociedade (como é sabido, o chamado crime organizado brasileiro formou-se nas prisões e delas são comandados).


Objetivo III
Prevenção especial positiva (= Humanizar o criminoso)
Direcionada: ao criminoso.

Razões alegadas:
- O criminoso é um ser com deficiências em seu desenvolvimento pessoal-social. Seja em nível cognitivo, moral ou social ele precisa de ajuda para transformar-se em uma pessoa normal.
- A pena deve ser ressocializadora, educativa, re-adaptante (são as chamadas ideologias “re-”).

Tradução popular: “O preso precisa ser recuperado para a vida em sociedade.”

Críticas:
- Se essa fosse a função central da pena, esta deveria se reger pela periculosidade do autor (o que ele poderá vir a fazer no futuro) e não pela culpabilidade do ato ilícito já praticado, que é o cerne do nosso sistema de garantias jurídicas.
- O criminoso não é necessariamente alguém mal-adaptado ou incapaz.
- Não raro, o criminoso é uma pessoa regularmente “boa” que, num momento determinado,
cometeu um ato criminalmente reprovável, que contradiz com sua personalidade (isso se aplica, sobretudo, ao chamado “criminoso passional puro”).
- Mesmo que fosse um ser que tivesse sido socializado de forma nociva à sociedade, o Estado não pode forçar uma pessoa a se transformar moralmente; isto seria uma forma de violação da liberdade de crença, inerente ao conceito de liberdade humana conquistado a partir da Era Moderna. O Estado pode exigir a abstenção da prática de crimes, mas jamais pode exigir pureza de pensamentos ou sentimentos.
- Se os criminosos nos parecem sempre carentes de educação, de família modelar, ou mesmo de boa aparência, é porque somos levados a confundir criminoso (um conceito legal aplicável do ladrãozinho, passando pelo assassino, ao sonegador de impostos e ao político corrupto) com os criminalizados (estereótipo que só vai do ladrãozinho ao assassino pobre).
- O crime, como seria de se esperar, é cometido por pessoas dos mais variados níveis de educação e renda, portanto, criminosos há de todos os tipos sociais. Mas para ser encarcerado é preciso ser mais do que um mero praticante de ilícitos penais: é preciso ser desqualificado o bastante para ser selecionado pelas agências de persecução e condenação penal (polícias e sistema de justiça). Essa é a razão porque confundimos encarcerados - que são invariavelmente pobres - com criminosos e, assim, não é difícil generalizar que sendo os presos que conhecemos pobres e incultos (e sendo esses presos nosso modelo mental de criminosos) que passemos a acreditar que seja inerente ao criminoso em geral a falta de educação, a incapacidade de relações amistosas e uma inadequada socialização.
- Para ressocializar o condenado, o encarceramento haveria de reforçar o lado humano da sua identidade. Em nosso sistema, no entanto, o que é reforçado é seu lado criminoso: o sujeito é resumido ao seu crime. Um indivíduo que com 30 anos de vida cometeu um único crime, numa única tarde, pode ter feito algo realmente monstruoso, mas restam 99,9% de seu tempo vivido para atestar que ele é mais do que o “monstro” daquela tarde. Mas confundido com o seu crime, que passa a ser ele próprio, o indivíduo sente que nada mais tem a perder e acaba por aceitar a identidade desacreditada que lhe foi atribuída, com seu consequente desvio para a criminalidade tornada, então, modo de vida.
- Por fim, para “melhorar” alguém o ambiente carcerário haveria de ser moralmente superior ao ambiente de origem do condenado, o que não condiz com a realidade.


Objetivo IV
Prevenção geral negativa (= Amedrontar futuros candidatos ao crime)

Direcionada: à sociedade
Razão alegada:
- A condenação do criminoso serve para intimidar a sociedade, mostrando o que acontece àqueles que delinqüem.
Tradução popular: “A punição deve ser exemplar, para que os que estão pensando em cometer delitos semelhantes sintam o terrível peso da lei.”
Críticas:
- A pena é uma resposta a um autor determinado, que cometeu um crime específico, devendo ser proporcional, em sua extensão, à reprovabilidade pessoal de sua conduta, não sendo possível, de lege data, estender seus efeitos erga omnes, com vistas a atingir a sociedade que não deve ser alcançada pelos efeitos negativos da pena.
- Um Estado que precisa impor suas leis unicamente pelo terror revela que vive em confronto com sua própria sociedade.
- O preso é tratado como instrumento de suplício, a fim de infundir medo à sociedade, negando sua condição de pessoa.
- As penas terão que ser extremamente duras para causar o pavor nos demais.
- Uma condenação errada, mas rápida, e que convença a opinião pública que a "justiça foi feita" será mais eficaz nos seus efeitos do que uma absolvição justa mas em desconformidade com a crença popular de que seu autor mereceria ter sido condenado;
- O preso tem o direito de não servir de contra-exemplo à sociedade, pois a pena dever ser medida pela culpabilidade do agente e não por seu efeito intimidatório sobre a colectividade.



Objetivo V
Prevenção geral positiva (= Convencer a sociedade que as leis penais são modelos vigentes de orientação de conduta).
Direcionada: à sociedade.
Razões alegadas:
- As normas penais são uma tentativa de manter vigentes certas normas de convivência. Assim, se uma norma diz que não se deve matar a outrem, isso se trata de uma orientação de conduta que deve reger o trato interpessoal. Quando alguém comete um crime de homicídio está, assim, negando a vigência dessa norma social-penal (não matarás), estará dizendo: “Eu não acho que devo orientar meu comportamento por tal regra”. Se esse matar se tornar um comportamento banalizado (copiado), as pessoas em geral começarão a ter dúvida quanto à vigência da norma “não matarás”. A pena surge, então, como uma reafirmação da vigência da norma, uma lembrança de que a regra do não matarás (ou qualquer outra) continua valendo, apesar de ter tido sua vigência negada pelo infrator. A exceção (matar) reforça a regra (não matar).
- Ao delinqüir o sujeito se torna útil à sociedade na exata medida em que o impacto público de seu crime leva os demais a reforçarem seus votos de repugnância a tal conduta, fortalecendo o consenso de que o crime é errado.
- A condenação do criminoso serve, então, para reforçar os laços sociais, explicitar o que é crime, aumentar a crença na justiça e a idéia de que vale a pena ser honesto.
Tradução popular: “Se não acontecer nada com esses criminosos, é porque não existe direito!”
Críticas
- O preso é utilizado como instrumento educativo para a sociedade.
- O preso tem direito de não servir de contra-exemplo aos demais.
- Crimes que não ocasionem repulsa pública (que não sejam transgressões sociais) deveriam permanecer impunes porque utilizam a justiça sem reforçar a idéia de que o crime não deve ser cometido. Assim, ao punir o contrabando, a pirataria, a sonegação fiscal das empresas (tidos popularmente como formas de defesa contra as injustiças da economia ou do governo), o sentimento gerado na população é o de que as autoridades estão dando vigência jurídica a normas que não fazem sentido, desacreditando o sistema de normas em geral.

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Palavras de alguns mestres:

Günter Jakobs (Catedrático de Direito Penal da Universidade de Bonn): “Não pode ser missão da pena evitar lesões a bem jurídicos. Sua missão é mais propriamente reafirmar a vigência da norma, devendo equiparar-se, a tal efeito, vigência e reconhecimento. O reconhecimento também pode ter lugar na consciência de que a norma foi infringida; a expectativa (também a do autor futuro) se dirige a que resulte confirmado como motivo do conflito [entre o autor e o Estado] a infração da norma pelo autor, e não a confiança da vítima na norma. Em todo caso, a pena dá lugar a que siga sendo um modelo idôneo de orientação. Resumindo: a missão da pena é a manutenção da norma como modelo de orientação para os contatos sociais. O conteúdo da pena é uma réplica, que tem lugar à custa do infrator, em face do seu questionamento [desobediência] à norma. (DERECHO PENAL. Madrid: Marcial Pons, 2007. P. 13.)

Claus Roxin (Catedrático de Direito Penal da Universidade de Munich): “A pena serve aos fins de prevenção especial e geral. Limita-se, em sua magnitude, pela medida da culpabilidade, porém pode ficar abaixo desse limite [e nunca acima!] se tal for necessário para atender exigência preventivo-especiais [de recuperação para vida uma não criminosa, do autor] e a isso não se oponha exigências mínimas perventivo-gerais [por exemplo, que não cause o sentimento social de que “vale a pena delinqüir”]. DERECHO PENAL. Madrid: Civitas, 2006. P. 103

Eugenio Raúl Zaffaroni: (Professor titular de Direito penal da Universidade Nacional de Buenos Aires): "A pena pode ter, pois, como objeto a prevenção especial, sem com isso negar ao autor a sua autonomia moral [já que então se reconhece que uma pessoa pode dirigir suas ações para o lícito ou para o ilícito]. O que a pena não pode ter como limite é a periculosidade, pois nos repugna que um ser que se autodetermina (pessoa humana) possa ser privado de bens jurídicos [como a liberdade] usando-se como único limite a necessidade de prevenção. Nesse ponto, o sentimento de segurança jurídica exige outro limite, que a lei traduz pela imposição de guardar a pena uma certa relação com a gravidade da lesão aos bens jurídicos, ou, mais precisamente, com a magnitude do injusto e com o grau de culpabilidade. A pena não retribui o injusto nem sua culpabilidade, mas deve guardar certa relação com ambos, como único caminho pelo qual se pode aspirar a garantir a segurança jurídica e não a afrontá-la.” MANUAL DE DIREITO PENAL BRASILEIRO. São Paulo: RT, 2008. P. 105
Obs. Nas últimas obras, Zaffaroni acabou se tornando agnóstico em relação à função das penas criminais - Teoria agnóstica da pena. Sendo agnóstico, ele, atualmente, se nega a discutir-lhes a função. Concorda com o jurista brasileiro Tobias Barreto (1839-1889) que o o conceito de pena criminal não é jurídico, mas político. Para Barreto, uma pena que fosse jurídica, propriamente dita, nunca poderia pretender nada além de reestabelecer o direito violado. No caso de um homicídio, nem matando o assassino, nem fazendo-o trabalhar para a família das vítimas perpetuamente se estaria reestabelecendo o direito violado (o morto continuaria morto). No último caso, assim como nas indenizações em geral, teríamos uma sanção civil e não penal. O fundamento das penas criminais é, então, a guerra. A sociedade declara guerra contra aquele que praticou algo, que, de acordo com o entendimento de determinada época e local, não pode passar sem sem uma pena. Inútil, então, discutir qual a função jurídica das penas, já que sua função é precipuamente política.

Guilherme de Souza Nucci (Professor de Direito Penal da PUC-SP): “Conforme o atual sistema normativo brasileiro, a pena não deixa de possuir todas as características impostas em sentido amplo (castigo + intimidação e reafirmação do Direito Penal + ressocialização): o art. 59 do Código Penal menciona que o juiz deve fixar a pena de modo a ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Além disso, não é demais citar o disposto no art. 121, § 5º. deste Código, salientando que é possível ao juiz aplicar o perdão judicial, quando as conseqüências da infração atingirem o próprio ente de maneira tão grave que a sanção penal se torne desnecessária, evidenciando o caráter punitivo que a pena possui. Sob outro prisma, asseverando o caráter reeducativo da pena, a Lei de Execuções Penais preceitua que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade” (art. 10). Ademais, o art. 22 da mesma Lei, dispõe que a “assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-lo para o retorno à liberdade (art. 22). Merece destaque, também, o disposto no art. 5º, 6, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.” Impossível, então, desconsiderar o tríplice aspecto da sanção penal.” (CÓDIGO PENAL COMENTADO. São Paulo: RT, 2006. p . 281.
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Textos de Sandro Sell relacionados:

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Farra do boi e farra da sociedade

Foto de uma lícita e incentivada vaquejada. Se fosse tirada em uma comunidade tradicional de Santa Catarina, a imprensa diria ser flagrante de crime, mas em outros estados, ela notícia como "festa da vaquejada", "tradição local" ou "evento cultural!"



Texto extraído do Jus Navigandi http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9744


Não tenho simpatia pela farra do boi, como também não tenho por touradas, rodeios ou manifestações do gênero. Para mim poderiam acabar. Tenho sim, e muita, simpatia por churrascarias, circos com números de animais e não me importo muito sobre a forma com que os frangos são criados nas granjas, ou os porcos são transportados até os matadouros, desde que, é claro, cheguem ao açougue antes de sexta-feira. Acho que minha vontade de comer em rodízios de carne, até passar mal, é legítima, culturalmente estabelecida, e, por isso mesmo fora de discussão, não interessa quantos animais sejam necessários sacrificar para me satisfazer o apetite. Bois, búfalos, porcos, ovelhas, javalis, coelhos, frangos, codornas quero todos no meu prato, afinal estou pagando!
Não concordo que crianças trabalhem, em hipótese alguma, ajudando seus pais a vender milho na praia, carpindo na roça ou faxinando no lar. Acho que isso irá comprometer-lhes o futuro. Defendo que lugar de criança é na escola, numa boa escola! E espero que nos horários de folga brinquem com seus pais, passeiem ao ar livre e comam bastante vegetais, sucos e coisas saudáveis. Amo muito tudo isso! Aceito, entretanto, que crianças-show trabalhem nas passarelas e, sobretudo, nas novelas, que possam ter aí sua carreira desde os cinco anos, que brilhem, "porque gente é pra brilhar", se não der tempo de freqüentar a escola? Ora, a televisão e o teatro são excelentes escolas. Depois, sempre é possível conciliar os horários de gravação com estudos por correspondência. Acho até que o lema protetivo dos pequenos deveria ser: "lugar de criança é na escola, salvo se estiver no palco".
Os dois parágrafos acima ilustram bem o senso comum moral da sociedade classe-média brasileira do qual, em alguma medida, todos nós compartilhamos. Em sintonia esses parágrafos possuem não apenas a óbvia manifestação de hipocrisia relativista ("o que eu aceito é ético"), revelam também a intolerância absolutista ("o que eu não aceito, ou não compreendo, ou não faz parte da minha realidade, eu quero que seja, em qualquer hipótese, proibido"). Faz parte desse mesmo senso comum moral a limitação ideológica do âmbito do que pode ser discutido. Assim quando um defensor da farra do boi lembra a violência contra os animais em rodeios, nosso simplório moralista sentencia mais uma das pérolas poéticas do debate acusatório: "um erro não compensa o outro", que deve ser entendida como: "estamos aqui para discutir sua falta de ética, a minha é problema meu".
No plano moral, os bois merecem respeito. No plano jurídico, a lei proíbe abusos, maus-tratos, feridas ou mutilações aos animais (art. 32 da Lei 9.605/98). Esse é o óbvio. O que é igualmente óbvio é que qualquer interpretação que se dê a essa lei – ou a qualquer outra - irá no sentido de proteger o pensamento cultural dominante. Ou seja: correr atrás do boi até ele cair de exaustão é conduta típica, criminosa; persegui-lo e matá-lo para converte-lo em salsicha é atividade econômica, legítima e correta; fazer o boi entrar no mar por medo dos farristas é abuso; fazer o tigre pular o círculo de fogo sob o chicote do domador é um espetáculo. São casos em que desrespeitando a velha regra de que se a conduta menos lesiva está proibida (cansar o boi) a mais lesiva (matá-lo) também deveria estar, o tal do argumento a fortiori, pois fica estranho quando se persegue o mínimo enquanto se autoriza o máximo.
Ah, é claro, o que varia, nos casos acima citados, é a intenção de quem pratica a ação lesiva ao boi, o tal do dolo do agente. A intenção do farrista é se divertir à custa do boi, algo reprovável sob qualquer ponto de vista. Já a do cliente de churrascaria, não: quando vamos a esses templos de abuso da carne alheia (dos animais) não é com intuito de nos divertirmos à custa deles, não. Vamos às churrascarias por necessidade, pois quem freqüenta essas casas, que vendem rodízios a mais de 20 reais por pessoa, não dispõem de meios alternativos – menos lesivos - de matar a fome. Sendo assim, no mínimo, estaria o freqüentador de churrascaria isento de culpa, pois sua conduta cairia naquele negócio de inexigibilidade de conduta diversa: ninguém pode ser punido por fazer aquilo que não poderia ser feito de outra forma, se comer no rodízio me é uma necessidade imponderável, não posso ser reprovado por fazer essa única coisa que poderia ter feito.
Tudo bem, se a solução pela isenção de culpa apresentada acima parece irônica demais, há outras saídas para continuar a dizer que quem corre atrás do boi é do mal enquanto quem financia a morte de muitos bois é do bem. Vamos apelar para o erro quanto à tipicidade da conduta: quem vai a uma churrascaria sequer se lembra de que o que lhe é servido à mesa tem alguma coisa a ver com as vidas que viviam em pastos; alucinado pela gula, algo plenamente justificável pelas circunstâncias, não tinha como saber que aquele porco que lhe está sendo agora servido foi aquele mesmo que berrou, mais do que os presos nos porões da ditadura, quando começaram os trabalhos do carrasco do matadouro. Acostumado a ver carnes de animais apenas acondicionadas em embalagens a vácuo, o cidadão comum confunde, justificadamente, um boi com uma fábrica de proteínas saborosas. Ironicamente, é só quando os farristas correm atrás de sua usina de proteínas é que o bom pai de família, agora convertido em telespectador da barbárie humana, se lembra de que onde há vida pode haver dor, o que, entretanto, não vai lhe impedir de enviar alguém à cozinha para ver se a costela já está no ponto.
Juridicamente falando, matar muitos animais para saciar muita gula e pouca fome seria conduta não criminosa, todos sabemos, por ser socialmente aceitável, portanto desprovida de antijuridicidade. Seria mesmo um exercício regular de direito. Então se saliente que o que está em discussão quando se pretende criminalizar a farra do boi não é se o boi deve ser protegido de toda forma de sofrimento desnecessário, quer sirva à diversão ou à gula humana, o que está em questão é que práticas de violência igualmente culturais (churrascarias, rodeios ou farras do boi) teremos por socialmente aceitáveis. Portanto, o que está em jogo na farra do boi não é, como pensam muitos, um conflito entre natureza e cultura, entre direitos dos animais e direitos culturais. Não, esse é um debate cultura-cultura: entre a cultura de violência contra os animais exercida pela maioria moral (tida como legítima) e a cultura de violência contra os animais de minorias cultuarias (tida como escandalosa). Violência pratica-se cá e lá, o que varia é apenas sua legitimidade social.
Tradicionalmente, práticas culturais de licitude duvidosas (circos de animais, atiradores de faca e crianças no trapézio, touradas, motéis, farras do boi, rodeios, churrascarias e boates privês) só conseguem o tão sonhado aceite social – a sua tão sonhada exclusão de ilicitude - caso se convertam em atividades econômicas, atraiam turistas e gerem empregos. Nesses casos, nossos freios morais amolecem, a lei evapora, os tribunais dizem que cada caso é um caso e que a melhor doutrina, para o caso, é aquela que diz que este caso não é o caso. Sustentam, então, nossos juristas, que os tempos são outros, que as leis devem ser interpretadas conforme sua historicidade e pronto. Todos nós concordamos. Mas e as crianças no circo? E os animais no picadeiro? E as moças profissionais das boates? E os touros para serem derrubados à unha? E os locais destinados a encontros para fins libidinosos (art. 229 de Código Penal)? Ora, que eu pare com isso, a sociedade precisa de válvulas de escape. Precisa, sobretudo de válvulas de escape à sua própria hipocrisia.
Dogmaticamente, dirão alguns, esse assunto da farra do boi não deve mais sequer ser discutido, afinal até mesmo o STF considerou que a prática da farra do boi é crime. Ao que dogmaticamente se poderia então responder: a farra do boi então é um tipo penal? E foi o STF que criou um crime, um tipo penal, ao arrepio do princípio da legalidade? Nullum crimen, nulla poena sine lege. Qual é a conduta típica? Farrear o boi? Em Santa Catarina, pela ação da polícia, parece ter virado conduta típica transportar bois na semana santa, tê-los em depósito, balançar camisetas à sua frente, beber nas proximidades de locais tradicionais de farra, fazer apologia da tal farra, correr atrás de boi, provocá-lo com palavras e atos (logo, logo será também por pensamento)... Nem o tipo penal do tráfico foi capaz de elencar tantas possibilidades de condutas típicas! Farrear o boi é daqueles tipos de crime (sic) envolventes, abertos, sem defesa, cabe nele tudo o que se quiser e mais um pouco. Daqueles que deixam o cidadão comum encarcerado, a comunidade revoltada e os juristas alienados pela falta de coragem profissional de – contra o peso da maioria moral e de suas próprias convicções particulares – alegar que, ainda que não simpatizemos com a tal prática, há regras e princípios estabelecidos a respeitar antes de se sair por aí anunciando que "por decisão de tal tribunal" a farra do boi tornou-se crime.
Ah, estou me esquecendo das pedradas que muitas vezes sofrem os bois, dos ignorantes que machucam o animal, como se seu sofrer aumentasse a diversão? Não, desses casos não é preciso sequer falar, pois qualquer um sabe que, se houver tais atos, estaremos diante de crimes que merecem punição. Não o de "farra do boi", claro, mas outros devidamente definidos em nosso ordenamento jurídico. Não há dúvida, abusos sempre há. No futebol e suas torcidas, nos shows de rock, nos bailes funk, no trânsito e no carnaval. Vamos proibir tudo isso e evitaremos certamente que os abusados se passem.
Punir os abusos, as ilegalidades, é dever das autoridades, mas presumir abusos, colocar malvados e brincalhões no mesmo saco, isso é igualmente abusivo. Quer eu ou a sociedade simpatizem ou não com as práticas alheias, esses alheios estão protegidos das minhas intervenções de antipatia pelo império da lei. Crie-se uma lei proibindo a farra do boi, seguindo os princípios da estrita legalidade penal e então poderemos discutir dogmaticamente sua ilicitude. Por enquanto, está um a zero para os farristas: farreamos as regras da dogmática para criar um tipo penal ad hoc.
O problema é que quando uma prática cultural no seu todo é considerada errada – mesmo que haja nela vários aspectos legítimos e não criminosos - é que se a joga completamente para a clandestinidade, para fora do âmbito de supervisão da autoridade que poderia agir mantendo-a dentro do âmbito da licitude (não é essa a função de tantos policiais nas partidas de futebol?). Quando toda uma prática cultural torna-se clandestina, tendo que ser feita de madrugada, no mato, longe da mídia e da polícia, aqueles que pretendem apenas brincar com o boi terão que conviver lado a lado com os perversos, e todos serão igualmente tidos como criminosos. Não há mais trigo, tudo vira joio.
Esse texto foi elaborado numa sexta-feira santa. Católicos não irão a churrascarias. Será um dia de trégua na gula sobre a carne de outras espécies de vida. Hoje é, portanto, o único dia em que desprovidos de hipocrisia podemos legitimamente condenar a farra do boi. A partir de amanhã, o consumo exagerado de carne que já foi vida nos pastos será liberada, e com ela toda nossa hipocrisia.

Sobre o autor
Sandro César Sell é autor dos livros: "Comportamento social e anti-social humano" (Ijuris, 2006) e "Ação afirmativa e democracia racial" (UFSC, 2002).


Home-page: sandrosell.blogspot.com
Sobre o texto:Texto inserido no Jus Navigandi nº1403 (5.5.2007)Elaborado em 04.2007.
Informações bibliográficas:Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:SELL, Sandro César. Farra do boi e farra da sociedade . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1403, 5 maio 2007. Disponível em: . Acesso em:
document.write(capturado());
30 ago. 2008.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O pedreiro, o banqueiro e um par de algemas

- Por Sandro Cesar Sell
Texto extraído do Jus Navigandihttp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11618

A edição da súmula vinculante do STF, que restringe a utilização de algemas a casos de estrita necessidade, tem sido comemorada como uma vitória do estado democrático de direito sobre o estado de polícia. A polêmica sobre os critérios de sua utilização se deu, de fato, a partir de Operação Satiagraha, e seus eventuais abusos contra presos de classe alta, mas a decisão do STF pretende ser lida como realizada a partir de sua origem de direito, a ação de um pedreiro de Laranjal Paulista, que permanecera algemado durante seu julgamento. Seja como for, o pedreiro foi providencial ao banqueiro. Coisas do destino.
Que o Estado policial brasileiro anda abusando em relação ao uso de algemas, prisões, vexames e safanões contra os indivíduos acusados é coisa sabida e denunciada há muito por órgãos nacionais e internacionais de direitos humanos. Se na economia somos uma emergente promessa, em nossas configurações de polícia estamos no pior dos mundos, a tropa de elite da indignidade humana.
Era preciso fazer alguma coisa, e o STF fez.
Para quê algemas quando elas não se justificam? Numa república democrática de direito, organizada sob o pálio da razão, as restrições ao indivíduo devem ser estritamente fundamentadas e sua liberdade amplamente presumida. Nulas devem ser as restrições carentes de justificativa. E quais seriam os possíveis motivos para tal justificativa, no caso das algemas? Risco de lesão ou fuga daquele que foi apreendido ou risco de agressão aos envolvidos na captura e transporte do preso. Se não há tais motivos, algemar alguém seria nada menos do que um ato simbólico de humilhação, uma pena antecipada, e com caráter infamante, uma equiparação entre o capturado e um animal selvagem.
Os acusados na Operação Satiagraha davam ao Estado tais motivos? Não. Nenhum de nós teria medo de descer no elevador ao lado deles, nenhum de nós se sentiria fisicamente ameaçado por encontrá-los livres no shopping. Então, por que "grampeá-los?" Puro intento de humilhação? Puro espetáculo para a mídia sedenta por presos com algum colorido novo em relação à monotonia dos sempre os mesmos pobres re-capturados, nesse jogo de prende-solta-prende-foge do Estado brasileiro, que faz com que os policiais ocupem 80º% do seu tempo "re-prendendo" as mesmas pessoas? É difícil saber.
Mas o que é fácil concluir pela edição da súmula é que se o Estado tiver que pautar suas ações administrativas/penais pela razoabilidade e eficácia, pela idéia, muito justa, de que as restrições à dignidade humana só podem ser toleradas quando sejam não apenas legais, mas também funcionais, as derivações serão incontroláveis. Se algemar banqueiros e acusados de colarinho branco não se justifica pela baixa ou inexistente periculosidade física que representam, por que pô-los na cadeia? Quem não ameaça fisicamente ninguém deve ser posto entre grades? Será que a próxima súmula dirá que a prisão só se justifica quando houver motivos para algemar? Acho que seria uma decorrência lógica: se alguém não precisa de algemas (não pretende fugir nem atacar) não precisa de prisão.
Hoje é forte entre os grandes penalistas, do nível do ministro da Suprema Corte Argentina Eugênio R. Zaffaroni, a idéia de que a função das penas é puramente simbólica: serve não para proteger a sociedade, conter ou recuperar quem delinqüiu. Serve apenas para assustar os mais pobres de que com estes – e apenas com estes – o Estado não terá a mínima tolerância: será algema, camburão, câmera de TV na cara, superlotação e pena exemplar. Se as penas (e, por decorrência, as medidas que a precedem) possuem apenas caráter simbólico, isso significa que não é possível analisar as ações penais pela lógica da eficácia ou da razoabilidade. Pois, generalizando-se essa exigência, não haverá mais prisões neste país em que os estabelecimentos prisionais (para provisórios ou permanentes) são incapazes de promover, sob qualquer medida do razoável, os fins a que se destinam. E, ao contrário, quando se tornaram locais servis a organizações criminosas e inferno para a dignidade de quem neles adentra. A prisão no Brasil, medida pelo princípio da razoabilidade e eficácia, deveria ser declarada abusiva, desde a origem.
Em respeito ao princípio da dignidade humana (na versão "Ferrajoli para milionários"), algemar um banqueiro é, por presunção, abusivo; enquanto que algemar um pedreiro é, salvo prova em contrário (a ser decidida com toda calma e tempo do mundo), uma medida de cautela razoável. Essa é a tradução rasteira, para efeitos práticos, da súmula do STF. Em nível de senso comum, inteligência prática etc. isso até tem sua razão de ser: é mais fácil imaginarmos um pedreiro fisicamente agressivo do que um banqueiro. Da mesma forma que as fundadas suspeitas do artigo 244 do CPP levariam "naturalmente" a dar uma "geral" no pedreiro que passeia pela avenida e uma escolta de cortesia ao banqueiro transeunte. Fundadas suspeitas ou pré-percepção de periculosidade seguem tradicionalmente a cartografia da exclusão social: todas as desconfianças concentram-se nos que não concentram nada de renda.
Em termos de eficácia ou de proteção à sociedade, a algema não se aplica a autores de crimes de colarinho branco (suas armas sempre foram dinheiro, assinaturas, maquiagens e contatos com autoridades bem-nascidas, nunca facas, pistolas ou assassinos) e nem tampouco, pelos mesmos motivos, a prisão. Mas por que se continua esperando que pessoas dessa nobre estirpe passem eventualmente pela prisão? Pelo mesmo motivo que se quer vê-las, por vezes, algemadas, pela função simbólica da igualdade de tratamento. Pela dignidade erga omnes que é capaz de conferir o uso das mesmas regras (irrazoáveis, mesquinhas, vexatórias, mas comuníssimas no mundo dos pedreiros) no andar de cima.
Ao algemar os acusados da Operação Satiagraha, que, convenhamos, não sofreram nenhum dano irreparável (foram até vistos como mártires por setores da sociedade) e que, convenhamos, jamais sofrerão na Justiça qualquer coisa pior do que isso, o Estado brasileiro pode até ter feito algo que não se justificava pela necessidade, pode até ter ferido, de leve, a dignidade dos acusados. Mas o que o Estado fez mesmo foi duas coisas: lembrou que o princípio da igualdade também tem que ser levado em conta (e não apenas o da razoável eficácia) quando se trata de distribuir os ônus da vida sob o Estado (do qual fazem parte os impostos e as prisões) e, o lado triste, lembrou que isso (essa igualdade) é uma exceção que não deve se repetir tão cedo, sob pena de anulação do ato processual praticado, além de responsabilização civil e penal dos seus agentes.
Em resumo, o pedreiro cimentou a calçada por onde somente o banqueiro haverá de trilhar.



BIBLIOGRAFIA
BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, E. Raul. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan: 2003.
CALDEIRA BASTOS, João José. Curso crítico de Direito Penal. Florianópolis: Conceito, 2008.
JAKOBS, Günter. Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 1997.
NEUMAN, Elias. Los que viven del delito y los otros. Bogotá: Temis, 2005.
SELL, Sandro C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis, 2006.
SELL, Sandro C. A função das penas criminais. Disponível em
http://selldireito.blogspot.com/

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Dto. Penal 1. Questões para a prova oral.

PREZADOS ALUNOS das turmas de Direito Penal I, como informado em sala, estaremos realizando nossa prova "suplementar", oral. A prova é opcional e nela o acadêmico será interrogado por três vezes, sendo que cada resposta correta renderá até 1,0 ponto, que será acrescido à nota da última prova.
CALENDÁRIO DA AVALIAÇÃO:
DID 31 E 32: 8 DE JUNHO;
DID 11 E 12: 16 DE JUNHO;
DIN 11 E DIN 12: 18 DE JUNHO.
As perguntas abaixo são exemplos do que pode cair na prova, além de ser um seguro roteiro de estudo para a mesma.
Os melhores livros para respondê-las são: Direito Penal - parte geral, do Juarez Cirino dos Santos; O direito Penal I, do César Roberto Bitencourt; e o Código Penal comentado do Guilherme de Souza Nucci.
1) Quais as diferenças entre culpabilidade e antijuridicidade?
2) Quais os fundamentos jurídicos e ético-sociais da legítima defesa?
3) Qual o significado das expressões “atual” e “iminente” na legítima defesa?
4) Todos os direitos podem ser defendidos por legítima defesa?
5) Existe legítima defesa contra excludentes de ilicitude?
6) Existe legítima defesa contra excludentes de culpabilidade?
7) A agressão injusta na legítima defesa equivale a uma agressão criminosa?
8) Se o atirador de faca do circo erra, involuntariamente, seu alvo e atinge a moça postada próxima ao alvo, ele responderá criminalmente pela lesão? Sob que fundamento?
9) Quando é possível ao agredido fugir numa situação em que caberia legítima defesa, ele estará obrigado a fazê-lo, a fim de não lesionar o agressor?
10) Podem-se defender bens comunitários por meio da legítima defesa?
11) Pode-se defender a Bandeira Nacional de uma agressão (fogo, rasgão, cuspidela...) com legítima defesa?
12) Quem foi a júri e nele teve reconhecida a legítima defesa de sua conduta permanece sendo “réu primário”?
13) Em que situações agressões de animais se encaixarão em legítima defesa e não em estado de necessidade?
14) Existe legítima defesa da honra no direito brasileiro?
15) Ameaças com armas de brinquedos serão legítima defesa real ou putativa? (Como assim, depende?)
16) Dê um exemplo putativo de estrito cumprimento do dever legal.
17) Aquele que tenta evitar a morte do suicida pode ser barrado nesta ação por um terceiro, em legítima defesa do comportamento do suicida?
18) O atirador de elite da polícia, ao atirar no seqüestrador, como única forma de salvar a vida do refém, age em legítima defesa de terceiros ou em estrito cumprimento de um dever legal?
19) A colocação de cercas elétricas, não letais, de proteção nas casas enquadra-se em que excludente de ilicitude?
20) Uma morte sobrevinda de um choque emanado de uma cerca elétrica mortal pode se enquadrar em legítima defesa? Explique.
21) A situação de o agressor na legítima defesa ser uma pessoa de culpabilidade diminuída terá algum impacto sobre a análise dos excessos na legítima defesa?
22) Um cão pode ser defendido por meio da legítima defesa?
23) Quando os médicos não precisarão do consentimento do paciente para submetê-lo a procedimentos cirúrgicos arriscados?
24) Legítima defesa de terceiros requer o consentimento do defendido?
25) O garante pode agir em legítima defesa contra seu garantido? Explique.
26) O que é estado de necessidade?
27) Diferencie estado de necessidade exculpante de estado de necessidade justificante.
28) Qual é o significado da expressão “atual” no art. 24 do CP?
29) Em que situação podem aqueles que “têm o dever legal de enfrentar o perigo” não o fazê-lo?
30) Qual a diferença entre estado de necessidade agressivo e defensivo?
31) O marido pode obrigar a esposa à com ele fazer sexo, sob a alegação de exercício regular de direito?
32) O que é erro de tipo?
33) O que é erro de proibição?
34) Quanto à ilicitude, como se classifica a conduta dos lutadores num campeonato de vale-tudo?
35) A vida de crianças tem preferência sobre a de velhos em emergências hospitalares? Sob que fundamento jurídico?
36) Se Tício vai à casa de Mauro para com ele reconciliar-se, mas Mauro, de forma compreensível, acredita que Tício está ali para matálo, - razão pela qual Mauro ataca Tício, lesionando-o; este, por sua vez, lesiona Tício para se defender. Como se classificarão as lesões de Mauro em Tício e as de Tício em Mauro?
37) O que é crime preterdoloso?
38) Por que, tecnicamente, há polêmica na aceitação irrestrita do crime de latrocínio como exemplo de "crime preterdoloso"?